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'Eu tenho um sonho: pular de paraquedas, lá do alto, bem de cima de um balão'
Da Redação | 09 de maio de 2025 - 05:57

Por Giovani Marino Favero
Há amizades que transcendem o tempo. São aquelas raras, eternas, que nos moldam. Quando eu tinha uns dez, quase onze anos, conheci o Nerino. O nome já chamava atenção — diferente, sonoro — mas o que mais marcava era a tranquilidade com que ele levava a vida. Não se incomodava com piadas, nem com provocações. Era do tipo que desarmava qualquer tentativa de bullying com um sorriso. E foi assim que nossa amizade começou: leve, espontânea, sólida.
Estudamos juntos até o terceirão. Ficamos no Santo Inácio até o segundo ano e depois migramos para o cursinho da moda da época — o Nobel — no último ano do ensino médio.
Avanço no tempo para depois voltar: no velório do Nerino, o que mais me tocou foi a quantidade absurda de histórias que cada pessoa ali tinha com ele. Sinceras, divertidas, surreais. Coisas que dariam fácil uma boa série da Netflix. E não, não seria exagero. Enquanto ouvia os causos, rindo por dentro, pensava na capacidade quase cinematográfica que ele tinha de viver intensamente.
ou direto em Engenharia Civil na UEM. Lembro bem: após as provas, comentou que ou cola para a menina de trás e, dias depois, ficaram na festa de encerramento do vestibular. Mas a engenharia não era a praia dele. O sonho era outro — voar. E foi atrás disso.
Fez o curso de piloto e, como se não bastasse, ainda cursou istração na UEM. Tinha uma calma impressionante e uma fé inabalável de que tudo acabaria bem. Virou piloto em pouco tempo, cruzou céus e fronteiras. Mas nos finais de ano, deixava o avião de lado para ser guarda-vidas civil em Guaratuba. Daí surgiram mais capítulos da sua vida — e que capítulos!
Tinha todas as credenciais para trabalhar em grandes companhias aéreas, mas recusava a ideia de ser “escravo” do sistema. Amava voar, mas odiava burocracia. Virou instrutor de voo, e era feliz assim. Nos intervalos da rotina, se tornava inventor: fazia caixas para abelhas sem ferrão, virou mestre cervejeiro premiado com a Tartaruga Beer, jogava tênis de mesa, nadava bem. Um faz-tudo com alma livre.
Em 2023, veio o baque: diagnóstico de leucemia mieloide aguda. Aquelas com baixíssimas chances de sobrevivência. Mas Nerino era diferente. Com calma, positividade e fé, superou os primeiros dias, depois os meses. Em abril de 2024, mandou uma mensagem dizendo que estava livre da doença. Um entre milhões.
Comemoramos. Fizemos churrascos com os amigos da infância, acreditando que o pior havia ficado para trás. Mas em março deste ano, exames mostraram a volta da doença — agora acompanhada de uma síndrome mielodisplásica. A medula começava a falhar.
Ele não se abalou. Continuou pilotando. Dias atrás, revi um vídeo de março: ele narrando com humor o voo, como sempre fazia. Mas o corpo já dava sinais. Em abril, ou a depender de plaquetas e hemoderivados. A avaliação para transplante em Curitiba seria no dia 8 de maio. Mas no domingo, dia 4, ele ou mal. Faleceu na manhã de segunda, dia 5.
Um de nossos melhores amigos, médico, foi o último a vê-lo. E, no seu jeito leve, disse: “Obrigado, Durma. Vai com Deus.” Horas depois, Nerino partia — como quem decola em voo calmo e sereno para outra dimensão.
Nunca conheci alguém como ele. Talvez nunca conheça.
Nos anos 90, montamos uma banda de garagem. Nerino era o baterista. Entre um ensaio e outro, entre uma cerveja e uma ideia, ele disse com aquele jeito dele:
“Podíamos compor como os Engenheiros… é só fazer uma letra meio visual, tipo:
‘Eu tenho um sonho: é pular de paraquedas, lá do alto, bem de cima de um balão.’”
E se alguém era capaz de realizar esse tipo de sonho, esse alguém era o Nerino.
Giovani Marino Favero é professor associado do Departamento de Biologia Geral da UEPG